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Bloqueio do Whatsapp, hermêutica dos emojis e das leis

  • Ricardo Pires Calciolari
  • 20 de jul. de 2016
  • 5 min de leitura

“Não existem fatos, apenas interpretações.” Friedrich Nietzsche

Interpretar é estabelecer o significado dos signos em um determinado contexto. A palavra é somente um agrupamento de caracteres que representam sinais fonéticos, os humanos é que estabelecem seu significado ao lê-las e interpretá-las. Também os emoticons e emojis são signos aos quais atribuímos significados pela interpretação (veja o diálogo no exemplo).


As leis, formadas por palavras, apresentam um desafio assemelhado, pois também devem ser interpretadas. No Direito denominamos a técnica interpretativa de hermenêutica. Assim, considera-se a interpretação da lei de acordo com a sua finalidade (teleológica), com a sua relação com as demais normas (sistemática), voltada à implementação dos princípios constitucionais (principiológica), partindo-se sempre do real significado das palavras que integram o preceito normativo (gramatical).


Assim, como no exemplo dos emojis, a Lei nº 12.965/2014, denominado marco civil da internet, é passível de interpretação. Ela designa, no seu art. 15, os provedores de aplicação de internet (designados de PAI). Tratam-se de empresas (PJs com fins econômicos) que desenvolvem softwares (aplicativos) tais como as redes sociais. Pela interpretação gramatical um blog mantido por uma pessoa física não entraria no conceito (como esse aqui!). A Wikipédia, por não ter finalidade econômica, também não. Contudo, por ordem judicial, qualquer um, mesmo que pessoa física, pode ser obrigado a manter os dados, desde que se trate de registros relativos a fatos específicos em período determinado.


O WhatsApp parece enquadrar-se no conceito do caput do art. 15 citado acima. Assim, deveria manter arquivos semestrais dos dados desde junho de 2014 (fim da vacatio legis), certo? Mais ou menos... A regulamentação dessa norma só foi estabelecida em maio desse ano pelo Decreto Presidencial nº 8.771/2016, que entrou em vigor em junho desse ano. Tal Decreto estabelece diretrizes para armazenamento dos dados no sentido de garantir segurança do sigilo das comunicações, que é um princípio do Marco Civil e, principalmente, consagração do Princípio Constitucional de sigilo de correspondência entendido de forma ampla e moderna (na prática: controle estrito do acesso aos dados, inventários de registro de acesso e autenticação dos registros).


Não resta dúvida que isso impõe aos desenvolvedores de aplicativos um custo tecnológico de desenvolvimento de ferramenta de criptografia, autenticação e registro. Sem contar com os custos de armazenamento de dados e manutenção deles nos provedores físicos. Por isso a boa interpretação desses preceitos normativos é fundamental.


Agora apresento dúvidas na interpretação (ou hermenêutica): (i) desde quando existe a obrigação de armazenamento (desde 2014 ou desde 2016)? (ii) o que precisa ser armazenado (conteúdo, registros de acesso, horários, IPs, etc.)? Quais os parâmetros técnicos dessa obrigação de guarda e armazenamento? A resposta parece estar no § 1º do art. 13 do Decreto citado, o qual afirma que o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGIBr) recomendará normas e padrões técnicos e operacionais de acordo com o porte dos provedores de aplicação.


O CGIBr já fez estudos e reuniões abertas sobre o tema (esse vídeo, em especial). De fato, como mostra a crítica do vídeo, o que vemos por aí são diversas interpretações confusas e superficiais, sem analisar o processo de formação do próprio marco civil, suas finalidades e princípios (daí a importância da boa hermenêutica) e as questões tecnológicas e de infraestrutura de telecomunicações envolvidas. Isso é essencial para uma boa interpretação.


Já sobre as decisões que impuseram o bloqueio, a interpretação é a de que a guarda de dados já seria obrigatória e, portanto, deveria o provedor de aplicação apresentar os dados que entregariam informações importantes em processos criminais que investigam atuação de quadrilhas que se comunicam pelo WhatsApp. O WhatsApp afirma que não detém os dados e por isso não pode entregá-los. Daí as perguntas anteriores (eles deveriam manter esses dados? Desde quando? Quais dados?).


Em decisão recente o STF entendeu exagerada a medida de bloqueio, mas não se pronunciou em nenhum momento sobre as questões suscitadas acima. Em situação anterior entendeu exagerada também a prisão do próprio Diretor do Facebook no Brasil. De fato, se o Whatsapp não detém essas informações não há astreintes, prisão ou bloqueio que farão com que tais informações apareçam...


É preciso frisar também que a decisão do STF foi tomada de forma cautelar e monocrática na ADPF 403/SE, e ficou bem claro na decisão que não se deve entrar no mérito das questões acima. O que o Min. Lewandowisk pontou ontem é que o bloqueio não é a medida de pressão correta, pois violaria o direito de comunicação de todos para obter provas em um processo determinado. O STF não apresentou sua interpretação do marco civil e as respostas das questões que fiz acima, que são o núcleo da questão.


O fato é que tais questões são, sobretudo, técnicas. As leis e decretos nunca conseguirão detalhar os pormenores tecnológicos envolvidos, pois eles se alteram com uma enorme rapidez, o que é incompatível com o moroso processo político. Assim, uma orientação direta do CGIBr seguida de uma diretriz por Decreto Presidencial seriam muito mais úteis aos empreendedores do setor do que um eventual julgamento por controle concentrado.


Esse, ao meu ver, é o cerne da questão vista de forma mais ampla. O whatsapp é o aplicativo favorito no Brasil, na África do Sul e na Indonésia. Já nos países de primeiro mundo a principal forma de troca de mensagens é o SMS, seguido pelo facebook menseger (Há inúmeras pesquisas nesse sentido, como essa e essa). Acho que é fácil perceber que o Whatsapp além de mais simples (exige menos do hardware e do usuário) utiliza menos banda na comunicação e, de quebra, não guarda as informações.


Assim, países de terceiro mundo, com alto custo de dispositivos tecnológicos, um marco regulatório no setor de telecomunicações ineficiente, banda larga móvel limitada e cara apresentem preferência pela comunicação pelo whatsapp. Países de primeiro mundo preferem SMS e facebook menseger. Na dúvida pergunte para um estadunidense, ele provavelmente nem sabe o que é Whatsapp e, os que sabem, raramente o utilizam. Ao meu ver discutir a questão “bloqueia ou não bloqueia” dissociada do marco regulatório das telecomunicações como um todo é o mesmo que interpretar um emoji isoladamente.


O fortalecimento dos órgãos técnicos, assim como da própria infraestrutura de telecomunicações e dos marcos regulalatórios (tanto o Marco Civil da Internet quanto a LGT), tem profundas relações com o uso das redes sociais, seja para fins lícitos ou ilícitos. O impacto das medidas judiciais de bloqueio parecem surtir menos efeitos do que uma regulamentação séria, tecnicamente embasada e efetiva. Esse parece o caminho que o Ministério da Justiça pretende seguir, embora já muito atrasado (veja essa reportagem).


Encerro o papo com um aforismo de Millôr e com a recomendação de leitura do artigo do Colega Professor Moisés Cassanti, mas cuidado com a interpretação! Eu, apesar de técnico em programação, ainda prefiro ouvir a voz das pessoas...


Só depois que a tecnologia inventou o telefone, o telégrafo, a televisão, a internet, foi que se descobriu que o problema de comunicação mais sério era o de perto." Millôr Fernandes


 
 
 

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